Por Franklin Alexandre
Desde que perdi minha avó paterna, sinto que algo precioso foi levado junto com ela. Era como se ela fosse um HD de infinitos terabytes, repleto de receitas, histórias, piadas, memórias, e, principalmente, amor. Embora eu tenha aproveitado muito do tempo que passamos juntos, uma parte de mim ainda sente que poderia ter perguntado mais, ouvido mais, descoberto mais.
Um exemplo simples disso é uma caravela de madeira que decorava a sala dela. Um enfeite grande, com velas envelhecidas pelo tempo e uma cruz vermelha desenhada. Até hoje ninguém na família sabe de onde ela veio. Mas não é a origem da caravela que importa. O que realmente marcou minha vida foi o que minha avó fez com ela em um daqueles fins de semana lentos, quando o tédio nos deixa vulneráveis a descobertas inesperadas.
Desmontando a Caravela: Um Ensinamento Disfarçado de Brincadeira
Era uma tarde comum, daquelas em que a TV exibe filmes repetidos. Minha avó, percebendo meu tédio, sugeriu:
“Filho, pegue aquele barco que você tanto gosta, quero te mostrar uma coisa.”
Obedeci. Peguei a caravela, subi em uma cadeira e a entreguei. Com sua voz rouca e firme, ela me disse:
“Agora desmonte o mastro e me dê.”
Quando o fiz, ela perguntou:
“Isso é a caravela?”
Respondi, meio confuso:
“Não, vó. É só um pedaço de madeira.”
Então ela pediu a vela, as cordas, os lemes, e assim seguimos, peça por peça. A cada entrega, a mesma pergunta:
“Isso é a caravela?”
E a cada vez, eu ria mais, respondendo:
“Não, vó, isso é só uma parte.”
Quando desmontamos tudo, sobraram pedaços que nem sabíamos onde encaixar de volta. Rimos muito, guardamos a caravela desmontada e seguimos com o dia. Mas aquele momento ficou gravado em mim, como uma memória-base, uma lição que só muitos anos depois começou a fazer sentido.
Desmontando Problemas, Situações e Nós Mesmos
O que minha avó fez naquela tarde foi mais do que uma brincadeira. Ela me ensinou que as coisas — e as situações — só existem como as percebemos, na união de suas partes. Uma caravela não é uma vela, um mastro ou um leme, mas o conjunto de tudo isso. E, da mesma forma, nossos problemas não são monolíticos; eles são um mosaico de emoções, percepções e contextos.
Essa perspectiva começou a transformar minha vida. Recentemente, em meio a uma discussão com minha esposa, lembrei-me da caravela. Em vez de me perder na raiva, pausei e “desmontei” mentalmente a situação:
- O motivo da briga.
- O sentimento que estava alimentando minha irritação.
- A imagem de nós dois discutindo, como se fosse uma cena de um filme absurdo.
De repente, percebi a inutilidade daquele conflito. Respirei, soltei a tensão, sorri e abracei minha esposa. Aquela pequena pausa para desmontar o problema revelou o que estava escondido: a insignificância da discussão diante do que realmente importa.
O Poder de Desmontar para Enxergar o Essencial
Desmontar as coisas — físicas ou abstratas — é uma forma de treinar nossa mente para ver além das aparências. Assim como a caravela só se torna um barco quando suas peças estão juntas, muitos dos problemas que enfrentamos só parecem gigantes porque não os dividimos em partes menores e mais compreensíveis.
Minha avó, sem saber, plantou em mim a habilidade de desconstruir. E agora, como pai, tento passar isso adiante. Recentemente, sentei com meu filho para desmontar um carrinho de controle remoto. Começamos com a mesma pergunta:
“O volante é o carrinho?”
Conclusão: O Mundo Como um Conjunto de Peças
Desmontar o mundo é, na verdade, desmontar nossas próprias percepções. É perceber que tudo o que vemos, sentimos e vivemos está interligado e condicionado. Essa prática nos ensina a enxergar o que está além das aparências — o que é essencial e o que é supérfluo.
Minha avó já se foi, mas a caravela dela continua viva em mim. Ela me ensinou que, às vezes, precisamos desmontar para realmente entender. E que, no fundo, somos todos um conjunto de peças tentando fazer sentido no grande mosaico da vida.